Exposição: Sou eu que desenho os meus pontos de fuga

Sou eu que desenho os meus pontos de fuga


“Ele pensava que as cidades serviam, sobretudo, para as usarmos e não para sermos usados por elas. Usar a cidade, para ele, era a liberdade que os muitos e diversos interesses, postos lado a lado, acabavam por permitir a todos os cidadãos que quisessem viver bem.” (1)

O Homem que deseja gostar de cidades

Presumimos não cair em descuido se, na esfera das relações entre o ser-humano e o mundo natural, instalarmos a construção de uma cerca protegendo o acesso a uma caverna na classe dos mais salientes e instigantes acontecimentos exordiais. Notemos: o gesto que, por proceder da sobrevivência, ancora o ser-humano à sua natureza animal é o mesmo que, por anteceder o aglomerado artificial, inflama a desarmonia da relação. O que une a rudimentar configuração gruta-horto-muralha e o sofisticado complexo urbano é o dom e o poder com que Prometeu nos favorece.

Neste sentido, a cidade instaura um território especulativo, opera a potência fulminante de um face-a-face íntimo: o nosso confronto, enquanto ser que conhece e se conhece, com a persistência dos infatigáveis dilemas e desconcertos da nossa natureza e da nossa relação com o mundo natural. Se a arte põe-em-obra, se desvela uma verdade que instaura e torna cognoscível, o corpo de trabalho de Daniel Nave incita-nos a interrogar a criação assombrosa da cidade e, com mais fervor, o ser que a cria.

Importa debruçarmo-nos sobre a história da consumação de potências inatas e faculdades adquiridas em que nos reconhecemos enquanto animal que produz sentido. Não nos detemos na disputa antiga que opõe o internalismo da razão e o externalismo da sensação; antes, na objetificação que ambas as construções epistemológicas ditam, no acervo de negações e exclusões do mundo natural que acumulam. No longo percurso da obstinada sofisticação da nossa macchina antropologica, ter-nos-emos tornado reféns dos mundos artificiais que erguemos?

Daniel Nave não acentua a cisão. Espaços pretensamente verosímeis são desmantelados, por fragmentação e achatamento, em enredos geométricos comprimidos no constrangimento da superfície. Cenários manifestamente virtuais são insinuados por massas sólidas e compósitos vaporosos que se elevam ou afundam, restaurando a ilusão da profundidade. Num gesto de duplo efeito, o carácter vivo e temperamental da cidade é um pano de fundo sintetizado em formas e forças (2), em luminosidades e mistérios, em matérias e ambientes que demarcam regiões afetivas contrastantes; contudo, comunicantes e — quem sabe? — apaziguadas. Diríamos que, no campo da imagem, entre colapsos e perdurações, Daniel Nave concilia o rigor científico da perspetiva renascentista e o êxtase emocional da subjetividade romântica.
 

sou eu que desenho os meus pontos de fuga

S/ título, 2005
Série Formas e Forças (pormenor)


Se, na nossa história enquanto seres cognoscentes, no devir humano, a arte, excedendo o apetrecho, intensifica o requinte da nossa existência entre os entes inumanos, entre as coisas naturais, Daniel Nave furta-se à tendência. Na medida em que não imitam, desembaraçando-se dos saberes que codificam e das exegeses que decifram, estes desenhos e construções alojam a sua alteridade, o resto que os completa e lhes pertence, mostrando-se no mundo entre as coisas enquanto blocos puros de visibilidade, presenças brutas e ostensivas que detêm o seu fora e o seu dentro, o isto-é-em-si de mundos imaginários onde as fronteiras são pulverizadas. Diante deles, somos engolidos e projetados. Vêm tocar-nos a pele e penetrar-nos a carne e, reciprocamente, são o corpo em que nos (re)vemos. Murmurar-nos-á esta osmose a chave do segredo, o escape da existência artificial?

O eloquente silêncio dos mundos imaginários de Daniel Nave não nos desvenda o desfecho da aventura. Neste impasse, Sou eu que desenho os meus pontos de fuga abre-nos a brecha para um espaço de quatro dimensões, uma suspensão de segunda ordem que arrisca a transformação dos próprios processos ontológicos do ser cognoscente e do ser das coisas, que supera a divisão histórica entre sujeito e objeto, entre humano e inumano, entre artificial e natural. Esta constituição do ser desmorona a imobilidade do ser-que-é, reconfigurando-a no movimento do ser-que-se-dá, que se destina enquanto destinável do destinado no seio da doação mútua, do estar presente das presenças, do deixar-estar-presente. O Homem que deseja gostar de cidades é o que deixa estar presente o que não pertence à cidade. “Sem zonas demarcadas, eis a vida” (3).

Ricardo Escarduça


(1) Dias, Manuel Graça. O Homem que Gostava de Cidades. Relógio d’Água, Lisboa, 2001. (2) Apropriamo-nos, aqui, do título de uma das séries de trabalhos do artista. (3) Ibid. i).


Artista
Daniel Nave

Curadoria
Ricardo Escarduça

NOW
2023-12-08 16:00 - 2024-06-23 16:00
Todas as datas
  • De 2023-12-08 16:00 a 2024-06-23 16:00
Local
Museu Ibérico de Arqueologia e Arte
Telefone
241330100
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